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Gilmar Mendes e o 2º Pacto Republicano

Por Tarso Genro e Rogerio Favreto


“No texto da Constituição de 1988 há um núcleo essencial, não cumprido, contendo um conjunto de promessas da modernidade, que deve ser resgatado. O problema é que em países como o Brasil, formou-se um ‘silêncio eloquente’, acerca do significado da Constituição, naquilo que ela tem de ‘norma diretiva fundamental’. Numa palavra, sob o manto de uma ‘baixa constitucionalidade’, olvidou-se constituir a Constituição; mas muito pior do que o silêncio é não prestarmos atenção nele[1].” A resistência do Poder Judiciário, todavia, à superação da “baixa constitucionalidade” da Constituição Democrática — sempre lembrada pelos juristas de primeira grandeza — é uma das características importantes (negativas) da constitucionalização efetiva do nosso Estado de Direito, para imputar materialidade aos Direitos Fundamentais.


O ministro Gilmar Mendes, ex-presidente do STF, foi um dos principais responsáveis, com os autores do presente artigo, estes em representação do Poder Executivo, para a formulação e implementação do “2º Pacto Republicano para a Reforma do Sistema de Justiça”, na verdade um avanço contra “a baixa constitucionalidade” do nosso sistema geral de normas. Como presidente do Supremo, juntamente com o presidente Lula no seu segundo mandato presidencial, suas atitudes foram decisivas para que o fluxo das relações daquela Corte com o Poder Executivo e o Poder Legislativo avançasse de forma harmônica na busca de que a “vontade de Constituição” se expressasse diretamente na vida comum. Aliás, o estranhamento entre o sistema de normas da Constituição e a realidade objetiva da sua aplicação na vida social, é onde se situa o caminho aberto pela “vontade” constituinte, para aproximar aquela vontade do pacto político com a vida real.


Na apresentação do seu “Estado de Direito e Jurisdição Constitucional”[2], no qual o ministro Gilmar trabalhou, entre outros temas de relevância, decisões sobre o significado dos Direitos Humanos no ordenamento jurídico e outras questões-chaves, como as atinentes à liberdade de expressão, ficou assente que “é natural que a vontade de constituição, na feliz assertiva de Konrad Hesse” — asseverou o ministro — “busque expressão nas decisões do órgão de cúpula do Judiciário.” O “Pacto de Estado” que ora noticiamos foi concebido com uma verdadeira estratégia institucional de gestão compartilhada dos interesses nacionais que, firmado em dezembro de 2008, demonstrou, não só a verdadeira possibilidade de que os poderes independentes podem ser harmônicos e “efetivos”, mas também que são aptos para enfrentar as questões do sentido do interesse público nacional, atinentes ao Sistema de Justiça,


Quem estranhou a rápida e recente reação do ministro Gilmar Mendes ao crime de genocídio, provavelmente cometido pelo governo que findou dia 31 de dezembro último, certamente não lembrava do seu empenho — na Corte Suprema da República — para buscar a efetividade da Constituição, sem recusar a necessidade de harmonizar os seus macro princípios para resolver as suas colisões “por dentro” do seu sistema de normas. Resolvê-los assim, não pelo impressionismo do espírito de turba, que caracteriza o que tem de pior hoje no populismo constitucional, que tem por escopo “ajudar” os violadores da ordem jurídica. “Ponderação” e “Proporcionalidade”, recebidas como pressupostos metodológicos nos julgamentos concretos, para superar os eventuais conflitos no reconhecimento de dois direitos fundamentais eventualmente colidentes, é um símbolo desta conexão dos valores com fatos. E destes com as normas: “a Constituição confere ao legislador margem discricionária para avaliação, valoração e conformação, quanto às medidas eficazes e suficientes para a proteção do bem jurídico; no entanto a mesma Constituição impõe ao legislador os limites do dever do respeito ao princípio da proporcionalidade”, salienta o ministro Gilmar Mendes, na obra referida.[3]


Só juristas e personalidades operadoras do Direito, como é o ministro Gilmar, poderiam “empurrar”, para um destino harmônico, um pacto da natureza deste — que ora lembramos — pois como recorda outro constitucionalista de excelência (Siqueira Castro) “a técnica exegética da ponderação dos interesses” é o que dá equilíbrio e sensatez, quando há confronto “entre princípios e normas constitucionais”[4] e a “busca da harmonização, entre os vários direitos em confronto, (vale-se) dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito” (…) de forma a que não se sacrifique o núcleo essencial de cada direito ou liberdade protegidos, para ser o caminho mais justo e equilibrado”: agrego — para salvar a essência do Estado de Direito da Democracia Constitucional.[5]


Os elementos do Pacto, ora relembrados, apontam diretamente para a efetividade de direitos fundamentais e para sua instrumentalização legítima pelos cidadãos, que buscam a sua efetividade. O 2º Pacto Republicano de Estado, firmado em 13 de abril de 2009[6], pelos presidentes dos três Poderes da República, constituiu-se como um acordo político de cooperação entre os Poderes, visando a continuidade das reformas do Sistema de Justiça, oportunidade que priorizou a democratização do acesso à Justiça, a concretização dos direitos humanos e fundamentais e a agilização e efetividade da prestação jurisdicional.


Outra orientação do 2º Pacto foi a sua amplitude temática, no sentido de contemplar todos os órgãos integrantes do Sistema de Justiça e não somente o Poder Judiciário. Por isso, o seu enfoque envolveu também o Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia, na compreensão de que todos têm responsabilidades e contribuições para o aperfeiçoamento e qualificação das suas instituições na prestação da Justiça.


Definido o Sistema de Justiça como campo de abrangência, “adotamos a política de priorizar temas para orientar as reformas normativas, a fim de permitir maior flexibilidade na seleção dos projetos de leis e, especialmente aproveitar e prestigiar as inúmeras iniciativas legislativas dos parlamentares, bem como outras propostas pendentes do 1º Pacto (2004). Ao mesmo tempo, essa estratégia permitiu o envio de alguns novos projetos no momento da assinatura do Pacto, como a apresentação futura em temas ainda em discussão e construção”.[7]


Destacou-se, na documentação preparatória ao Pacto por parte do Ministério da Justiça, a importância que adquiriu o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) que, exemplificado como trabalho transversal partido do ministério — repassou recursos de vulto (R$ 14 milhões de reais) por meio da Secretaria de Reforma do Judiciário, para um melhor aparelhamento da Defensoria Pública da União.


O sucesso dessa pactuação republicana, balizada pela co-gestão dos poderes, com respeito a sua autonomia federativa, permitiu a aprovação de mais de duas dezenas de novas leis, cabendo destacar:

i) a interiorização da Justiça Federal, com a criação de 230 novas varas para tornar aproximar a justiça do cidadão (Lei nº 12.011/09);


ii) a criação da Lei Orgânica da Defensoria Pública, para fortalecer a instituição, criação de ouvidorias e priorização de estruturação em regiões com IDH mais baixo para garantia dos direitos dos cidadãos (LC nº 132/09);


iii) Nova Lei do Mandado de Segurança, com a regulamentação do instrumento coletivo para proteção de direitos contra os abusos de autoridade (Lei nº12.016/09);


iv) criação dos Juizados da Fazenda Pública permitindo aos cidadãos instrumentos mais acessíveis e rápidos nas demandas contra os estados e municípios, por exemplo sobre questões tributárias, multas de trânsito e não atendimento de direitos de saúde, educação e assistência social (Lei nº 12.153/09);


v) no plano de atuação do Supremo Tribunal Federal, cumpre destacar a Lei 12.063/09, que trouxe a disciplina processual para a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), nos casos de omissão total ou parcial do cumprimento constitucional do dever de legislar. Ainda, a Lei 12.562/11, que dispõe sobre o processo e julgamento da representação interventiva perante o Supremo Tribunal Federal;


vi) a lei que disciplina as medidas cautelares no processo penal (prisão processual, fiança, liberdade provisória e outras medidas), conferindo mecanismos a serem usados pelo juiz durante o processo, a fim de garantir a devida condução da investigação criminal e a preservação da ordem pública ( Lei nº 12.403/11);


vii) atualização da Lei de Execução Penal, para prever a remissão da pena pelo tempo de estudo no sistema prisional, dentro das ações políticas do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) ( Lei 12.433/11):


viii) a regulamentação do Teletrabalho, que passa a não fazer distinção entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado ou realizado a distância (Lei nº 12.551/11);


ix) a Lei 12.527/11, que disciplina o acesso à informação, contribuindo para tornar o Estado mais transparente e democrático, por meio da consulta de documentos públicos e informações de ações e políticas dos órgãos de governo aos cidadãos;


x) a Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído (Lei nº 13.869/19).


A memória do êxito dessa pactuação republicana teve singular contribuição do ministro Gilmar Mendes, em especial pela sua visão distinta e inovadora na gestão do Sistema de Justiça, associada a sua capacidade intelectual e de articulação política. Portanto, mais um registro importante ao jurista homenageado.


NOTAS:

[1]STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do Direito Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.127.

[2] MENDES,Gilmar Ferreira. Estado de Direito e Jurisdição Constitucional – 2002-2010. São Paulo: Saraiva, 1ª edição 2011, p. 26.

[3]MENDES,Gilmar Ferreira. Estado de Direito e Jurisdição Constitucional – 2002-2010. São Paulo: Saraiva, 1ª edição 2011, p. 28.

[4]CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais: Ensaios sobre o Constitucionalismo Pós-Moderno e Comunitário. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1ª Edição 2003, p.73.

[5] Ibid., p.74.

[6] DOU de 06 de julho de 2009,

[7]Revista do II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo. Secretaria de Reforma do Judiciário – Ministério da Justiça. Brasília/DF, 2009, p. 12.

Tarso Genro é ex-ministro da Justiça, doutor honoris causa da Universidade Federal de Pelotas, autor de livros e artigos de Teoria do Direito e Teoria Política.

Rogerio Favreto é desembargador federal do TRF-4. Ex-secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça (2007-2010).

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