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A margem legal para o crédito consignado

Por Julia Vaz Mielczarski*

 

A margem de crédito consignado é um limite máximo de comprometimento da renda do beneficiário ou servidor público para contratação de empréstimos consignados. Esse tipo de empréstimo possui características específicas, em que as parcelas são descontadas diretamente na folha de pagamento ou no benefício previdenciário do contratante.

De acordo com o Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Federais (Lei nº 8.112/90[1]), o  limite máximo de margem costumava ser definido em até 35% da renda líquida mensal do beneficiário, ou seja, o valor que efetivamente cai na conta do contratante após os descontos obrigatórios. Sendo 30% destinado efetivamente aos empréstimos consignados no geral e 5% reservados exclusivamente para a amortização de despesas contraídas pelo cartão de crédito ou para a utilização de saque por meio do cartão de crédito.

Contudo, tais disposições foram revogadas com a promulgação da Lei nº 14.509/22[2], na qual passou a dispor sobre o percentual máximo permitido para a contratação de operações de crédito consignado.

O artigo 2º da nova lei, em seu parágrafo único e incisos, passou a prever que:

O total de consignações facultativas de que trata o caput deste artigo não excederá a 45% (quarenta e cinco por cento) da remuneração mensal, observado que:

I – 5% (cinco por cento) serão reservados exclusivamente para a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou para a utilização com a finalidade de saque por meio de cartão de crédito; e

II – 5% (cinco por cento) serão reservados exclusivamente para a amortização de despesas contraídas por meio de cartão consignado de benefício ou para a utilização com a finalidade de saque por meio de cartão consignado de benefício. (Promulgação partes vetadas).

Ressalta-se que, em que pese a referida lei tenha sido promulgada em dezembro do ano passado, ainda sob o governo Bolsonaro, quando sancionada, o ex-presidente vetou o inciso II que previa a possibilidade da limitação de 5% para amortização de despesas com cartões de benefícios. Ocorre que, tal veto foi derrubado, em maio desse ano, com votação no Congresso Nacional e a promulgação pelo atual Presidente da República.

Sendo assim, os servidores públicos passam a dispor de 35% da sua remuneração mensal para utilização em empréstimos consignados no geral, 5% para despesas contraídas com o cartão de crédito ou para a finalidade de saque por meio do cartão de crédito e, agora, mais 5% para despesas contraídas com o cartão de benefícios ou para a finalidade de saque por meio deste.

O cartão de benefícios é uma modalidade de cartão de crédito consignado, com desconto direto na folha de pagamento e outros benefícios vinculados obrigatoriamente, como descontos em farmácias conveniadas, auxílio funeral e seguro de vida[3]. Ou seja, trata-se de uma maior facilidade, de um cartão de benefício destinado para a compra ou saque dentro da margem consignável. Os juros desse tipo de cartão são limitados pelo governo e se diferenciam bastante dos juros praticados pelo mercado financeiro.

No entanto, é importante ressaltar que a margem de crédito consignado tem o objetivo de evitar o superendividamento dos beneficiários e servidores públicos, garantindo que eles mantenham uma parcela adequada da renda disponível para suas despesas mensais.

No momento da contratação de um empréstimo consignado, é fundamental verificar sua margem disponível antes de solicitar o crédito, para ter certeza de que está dentro do limite permitido por lei. Assim como, é dever das instituições financeiras que oferecem empréstimos consignados verificar a margem de crédito disponível antes de aprovar a operação.

A não observância desse limite pode acarretar graves prejuízos a subsistência do contratante e afetar o mínimo existencial. No ponto, bem ensina CLÁUDIA LIMA MARQUES[4]:

a proteção do mínimo existencial e a proteção das condições mínimas de sobrevivência do consumidor pessoal natural respeita o princípio da “dignidade da pessoa humana” (Art. 1º, III, da CF/1988), da proteção especial e ativa do consumidor (Art. 5º, XXXII, da CF/1988) e concretiza o objeto fundamental da República de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”(Art. 3º, III, da CF/1988), assim como realiza a finalidade da ordem constitucional econômica de “assegurar a todos existência digna (Art. 170 da CF/1988).

Não obstante, segundo Claudia Lima Marques, Clarissa Costa de Lima e Karen Bertoncello, a referência ao mínimo existencial no procedimento de conciliação global visa a garantir que o acordo celebrado não prejudique a subsistência do devedor, reforçando a dimensão social e de combate à exclusão do CDC[5]. Para elucidação quanto a definição do que seria o mínimo existencial, o entendimento de Juliana Maia Daniel[6] assim afirma:

A definição de um mínimo existencial que existe a priori, isto é, os direitos que comporiam esses mínimos seriam pré-estabelecidos, contra os quais nem a administração pública, nem o legislador poderiam se opor. Funcionaria, assim, como um ‘limite aos limites’, ou, na maior parte das vezes, como um limite ao limite da reserva do possível: se o Poder Público não pode ser obrigado a atender toda e qualquer demanda relativa aos direitos sociais ante a escassez dos recursos, por outro não pode negar, em hipótese alguma, a atenção ao núcleo mínimo desses direitos sociais, sob pena de negar efetividade à Constituição.Trata-se, portanto, de um conceito ‘em abstrato’, que não sofre a interferência da situação concreta que será posta à análise do julgador. Vale dizer, a desatenção a qualquer das prestações integrantes do mínimo existencial geraria imediatamente um direito subjetivo ao indivíduo para pleiteá-lo judicialmente. E, o julgador, neste caso, estaria obrigado a garantir essas prestações integrantes do mínimo existencial.

Dessa forma, em situações em que o limite legal não esteja sendo observado e se constatem abusos que prejudiquem a subsistência do contratante do crédito, necessário que se haja um controle jurisdicional para a determinação do limite adequado. Por esta razão, a Constituição da República de 1988 adotou o sistema de jurisdição una, ao dispor que a “lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito[7].

Significa dizer que o Judiciário é o órgão competente para afirmar o direito com caráter de definitividade e com prevalência em relação aos demais Poderes. O controle jurisdicional da Administração Pública garante, portanto, no dizer de BROSS[8], que a “vontade do legislador e a ordem constitucional sejam praticadas correta e independentemente de influências de terceiros”.

Nesse cenário, a assessoria jurídica Rogério Viola Coelho – Advocacia dos Direitos Fundamentais obteve decisão judicial favorável, em sede de tutela de urgência, para que limitasse os descontos do empréstimo consignado de uma servidora pública que se encontrava com o mínimo existencial prejudicado em razão do desconto integral de seu salário realizado pela instituição financeira, credora do empréstimo consignado contratada por esta. O magistrado do 2º Juízo da 3ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, determinou a limitação dos créditos consignados em 30% sob remuneração da autora, conforme se verifica[9]:

Há necessidade de um equilíbrio entre os direitos das partes: da autora em receber seu salário para prover sua subsistência e de sua família; do réu em cobrar a dívida do demandante através dos meios contratualmente previstos e aceitos pelo requerente.

Chega-se, assim, a conclusão de que o requerido pode reter, tão somente, 30% do salário (bruto menos os descontos obrigatórios) da autora para abater a dívida.

Nesse sentido navega a jurisprudência a qual me filio:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO DE LIMITAÇÃO DE DESCONTOS CUMULADA COM EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. TUTELA ANTECIPADA. LIMITAÇÃO DOS DESCONTOS EM FOLHA DE PAGAMENTO. DECISÃO MANTIDA. DESCONTOS EM FOLHA. Os descontos devem observar as determinações da Lei nº 10.820/03, com a redação dada pela Lei nº 13.172, de 2015, as quais enunciam que a somatória dos descontos não pode ultrapassar o patamar de 30% (trinta por cento) do benefício auferido. A limitação prevista no ordenamento jurídico tem como finalidade evitar o endividamento desenfreado e garantir o mínimo existencial ao aposentado ou pensionista, assegurando a sua própria subsistência e a da sua família, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. MULTA DIÁRIA. As astreintes têm por finalidade a coerção do devedor para fazê-lo cumprir o que foi definido em determinada decisão judicial, devendo respeitar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e não importando em enriquecimento indevido da parte contrária. Manutenção do valor fixado. Não há qualquer impedimento que a multa seja revista a qualquer tempo, nos termos do art. 537, caput e em seu §1º, do CPC. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Agravo de Instrumento Nº 70079237764, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Glênio José Wasserstein Hekman, Julgado em 12/12/2018).

Dessa maneira, é possível a limitação dos créditos consignados num patamar razoável à subsistência do servidor, possibilitando que os bancos recebam o seu crédito, sem que haja o superendividamento da pessoa. E em casos de extrapolação dessa margem legal, necessário que se busque a orientação jurídica para que evite prejuízos ao patrimônio financeiro do contratante do crédito.

 

[1] Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8112cons.htm>. Acesso em: 28/07/23.

[2] Lei nº 14.509, de 27 de dezembro de 2022. Dispõe sobre o percentual máximo aplicado para a contratação de operações de crédito com desconto automático em folha de pagamento; altera a Lei nº 14.431, de 3 de agosto de 2022; revoga dispositivos da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14509.htm>. Acesso em: 28/07/23.

[3] Derrubado veto na lei do aumento do consignado de servidores. Senado notícias. Disponível em:<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/04/26/derrubado-veto-na-lei-do-aumento-do-consignado-de-servidores>. Acesso em: 28/07/23.

[4] Comentários à Lei 14.181/2021 : a atualização do CDC em matéria de superendividamento / Antonio German Benjamin … [et al.] – São Paulo: Thomson Reuters Brasil. 2021, fl. 43.

[5] MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da Pandemia de COVID-19: Pela urgente aprovação do PL 3.515/2015 de atualização do CDC e por uma moratória aos consumidores. Revista de Direito do Consumidor, v. 129, p. 47-71, jun. 2020.

[6] DANIEL, Juliana Maia. O Mínimo Existencial no Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. (Dissertação de Mestrado em Direito). São Paulo: USP, 2013.

[7] BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. art. 5, XXXV, da Constituição da República.

[8] BROSS, S. (2006). O sistema de controle judicial da administração pública e a codificação da jurisdição administrativa. Revista CEJ, 10(34), 35-42. Disponível em: <//revistacej.cjf.jus.br/cej/index.php/revcej/article/view/726>. Acesso em: 22 jun. 2023.

[9] Processo nº 50465007420238210001 (2º Juízo da 3ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de Porto Alegre).


* Bacharela em Direito na Faculdade do Ministério Público, Assistente Jurídica no escritório Rogério Viola Coelho – Advocacia dos Direitos Fundamentais.


Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil


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