ANISTIADOS POLÍTICOS EM 2023
Rodrigo Teixeira Verçoza
Advogado OAB/RS 67.665
A lei da Anistia no Brasil, após 44 anos, não parece amoldar-se bem no contexto de forte tendência internacional à responsabilização individual. Adotada em 1979, a lei continua perdoando os crimes dos perpetradores de violência do Estado. Entretanto, nos últimos anos, surgiram fortes indagações a essa lei. Em audiência pública realizada pela Comissão de Anistia em junho de 2008, pela primeira vez o Estado brasileiro discutiu a possibilidade de processar judicialmente os agentes públicos que cometeram crimes contra os direitos humanos durante a Ditadura Militar. Com forte participação social, a audiência levou a Ordem dos Advogados do Brasil a propor ao Supremo Tribunal Federal uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n. 153/2008) questionando a legalidade da interpretação da lei que concedia anistia a crimes graves, como a tortura. A Suprema Corte brasileira, por sete votos a dois, decidiu, em 29 de abril de 2010, declarar válida a anistia para todos os crimes cometidos por agentes de Estado no Brasil durante a ditadura.
Entretanto, duas famílias de vítimas processaram militares por tortura, exigindo do Estado, na esfera cível, que estes fossem declarados “torturadores”, desafiando a ideia de que anistia implicava em amnésia e obtendo a primeira condenação de um agente da repressão brasileira por seus atos, ainda que na seara civil. No entanto, encontraram as portas da Justiça Penal fechadas devido à Lei de Anistia e a sua validação pelo Supremo Tribunal Federal.
Vale lembrar que esse fechamento de portas na Justiça nacional levou o país à condenação, em dezembro de 2010, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, a qual referiu que a lei de 1979 configura-se como uma autoanistia para os agentes do regime e, ainda mais, funcionaria como um mecanismo de impunidade frente a graves violações de direitos humanos não passíveis de anistia, segundo a Convenção de San José da Costa Rica. A Corte não apenas considerou ilegal e nula de qualquer efeito a Lei de Anistia para o caso em análise (caso n 11.552, Gomes Lund e outros versus Brasil, mais conhecido como caso “Guerrilha do Araguaia”), como estabeleceu que a mesma lei não poderia impedir a investigação e o processamento de qualquer outro crime de Estado. O Ministério das Relações Exteriores brasileiro manifestou-se no sentido de dar cumprimento à sentença.
Não esqueçamos que, no ano de 2009, houve a criação oficial de uma Comissão da Verdade no Brasil, que, mesmo sem poderes para processar e punir crimes, com a aprovação pelo Congresso Nacional, faria a identificação e promoveria o esclarecimento de inúmeros feitos até hoje cobertos pela penumbra do esquecimento, confrontando a ideia de que a anistia penal poderia, igualmente, implicar em um esquecimento social.
O caso brasileiro é, portanto, um desafio potencial à norma global da responsabilização individual, sugerindo que a insurgência dessa norma não mudou necessariamente o comportamento dos Estados. Alguns deles resistem à pressão internacional para que responsabilizem perpetradores de violências no passado, mesmo quando grupos de apoio aos direitos humanos e de vítimas igualmente pressionam por mudanças no plano interno.
O caso do Brasil indica que a anistia pode prevalecer em alguns casos, apesar de a tendência à responsabilização ser algo consolidado, levando ao questionamento para os setores acadêmicos e políticos.
No ordenamento jurídico brasileiro, há o princípio da reparação integral, conforme o artigo 944 do Código Civil, o qual busca colocar o lesado, na medida do possível, em uma situação equivalente à que se encontrava antes de ocorrer o fato danoso. Como a responsabilidade civil tem como função prioritária a reparação mais completa do dano, dentro do possível, essa norma constitui a diretiva fundamental para avaliação dos prejuízos e qualificação da indenização. Tal princípio deve ser aplicado tanto na reparação natural como na indenização pecuniária.
Há de se entender que todo o dano deve ser indenizado, inclusive as repercussões do dano na esfera jurídica do ofendido, portanto, tudo que o ofendido sofreu pelo fato de o sistema jurídico ligar o ofensor à responsabilidade, não distinguindo graus de culpa, nem qualidades das causas que concorreram.
Vale reforçar que o próprio artigo 16 da Lei 10.559/2002, o qual é utilizado por uma das correntes jurisprudenciais para vedar a cumulação da indenização prevista na referida lei com os danos morais, não exclui outros direitos conferidos por outras normas legais ou constitucionais. De acordo com o dispositivo em questão, é “vedada a acumulação de quaisquer pagamentos ou benefícios ou indenização com o mesmo fundamento”.
Destarte, da leitura do artigo 16 da Lei de Anistia, extrai-se que é possível a cumulatividade da reparação material decorrente do regime de anistia com qualquer outra reparação que tenha fundamento diverso, tal como ocorre na indenização por danos morais
Portanto, resta afirmar que a reparação econômica prevista na Lei de Anistia é perfeitamente cumulável com os danos morais, entendimento este que está em conformidade com a interpretação atual do Superior Tribunal de Justiça, o qual também se inclina pela imprescritibilidade desta demanda.
Imagem: Portal EBC/https://memoria.ebc.com.br/
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