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A expropriação, os pobres e o olho por olho no Banco Central

Por Rogério Viola Coelho – advogado


Uma mudança de carimbo e esperanças devastadas. O carimbo “sem data para pagamento” substituiu a garantia “pagamento até o final de 2022”. O que deveriam ou poderiam fazer os muitos milhares de pequenos funcionários e aposentados da Previdência para receber os valores reconhecidos pela justiça como de sua propriedade, certificados em precatórios?


Foi a pequena funcionária Maria do Carmo, que é dos Santos, e seu vizinho José, que é da Silva, que chegaram no meu escritório como representantes de um grupo de credores lesados pela apropriação indébita. Do Carmo e Seu José Metalúrgico como eram chamados pela vizinhança numa vila pobre de Porto Alegre. Ela ganha bruto 4.000 e pouco, mas sem reajuste há seis anos; ele, aposentado há uns 15 anos com mais de quatro mínimos, está agora com menos de dois, mas paga IR, uns trocos é verdade.

Os seus empréstimos consignados empatavam na altura dos R$ 130 mil, indo direto aos cofres dos bancos 30% dos ganhos brutos além de 11% de contribuição previdenciária e imposto de renda. No fim das contas e “noves fora”, ela recebe líquido pouco mais de 2 contos, e ele menos que isto. Do Carmo, com dois filhos pequenos e sem marido, e Seu José Metalúrgico, arrimo dos descendentes — um filho, de quando em quando desempregado, e seu neto. Ambos quitariam os consignados, o que daria um acréscimo de 50% do líquido, que é o que importa.


Já tinham entendido que o Judiciário fora desautorizado e ficara desmoralizado por ação espúria dos outros dois poderes constituídos de colarinhos brancos e, seguros de que o dinheiro é seu, logo pensaram em ocupar o Banco Central, onde estão as “burras do Tesouro”. O ensinamento dos “sem terra” — ocupar prédios públicos sem quebrar nada.


Quem falou na frente foi Seu José Metalúrgico que, quando na ativa, foi grevista, sindicalizado e meio revoltoso: “E podiam juntar alguns milhares, já que mais de cem mil iguais a eles, esparramados pelo Brasil, foram também roubados, só no primeiro ano. No fim dos seis anos poderiam chegar a um milhão e o montante do prejuízo a meio trilhão”.

Foi quando Do Carmo interveio para lembrar que os bolsonaristas tinham ônibus de luxo pagos por empresários, enquanto nossos sindicatos estão falidos. Mas deixou claro logo que apoiava a ideia. Então lembrou que ouvira na escola pública da vila, que no passado remoto, lá pelas Abissínia, tinha a lei de talião — o “olho por olho, dente por dente” — e a vítima podia devolver ao agressor o mal que lhe fizera, ou invadir a casa do ladrão que lhe roubara o pão.


Segura de si — pois até revista velha relia no salão da mãe-manicure – agregou que depois os antigos inventaram o pretor para revogar essa lei bárbara. Estava certa a Do Carmo, já que o Judiciário hoje cumpre essa função de obrigar o malfeitor a devolver o que é alheio. Assim, se o Judiciário não consegue, voltaria a valer a lei do talião. As vítimas do larápio estariam autorizadas a reagir contra a humilhação, ainda mais quando tirava o pão das crianças. E se grande é a força do ladrão, haverá uma multidão para lhe dar combate.


Por fim, pediram meus conselhos, quase que só por deferência. Foi quando lembrei da crônica do Edvaldo Santana [1] no Globo de um dia desses. Ele imaginou uma convocatória para um protesto dos quilombolas contra os destinos da Fundação Palmares, nos belos gramados da esplanada, mais os índios tapuias, cariris-socós e guajajaras que vivem nas cercanias, em protesto contra desmatamentos e as maldades contra as tribos da Amazônia.


Manifestou então sua dúvida, lembrando que as polícias bem armadas e os quartéis com seus tanques, canhões, mais 1.000 generais estrelados na retaguarda, protegeram abertamente os vândalos vestidos com a camisa canarinho e abriram as portas dos palácios. Mas não se podia esperar sua simpatia para uma causa destas que seria vista logo como subversiva e ponta de lança do comunismo ateu, inimigo da ordem, da família e da religião.


Foi quando Seu José Metalúrgico lembrou, resoluto, que quem mandava agora era o Lula, seu colega de profissão, torneiro mecânico como ele. O brilho de seus olhos dizia que Lula saiu do ABC para ensinar ao mundo o valor dos operários do chão de fábrica.

Foi quando me animei a intervir para explicar que o gesto criminoso do Estado fora justificado num artigo da Emenda 114, dizendo que o produto do crime iria para pagar a renda básica posta na Constituição. E que o Presidente certamente não sabia, nem viria a saber, que a renda destinada aos brasileiros em estado de pobreza absoluta estava sendo extraída de centenas de milhares de pobres e não das “elites deste país”. O Estado brasileiro, tal como um Robin Hood acovardado, decidira assaltar os trabalhadores urbanos do reino em vez dos nobres, cada vez mais abonados com isenções e incentivos sem fim.


Na prática, os recursos mal havidos iriam pra alimentar o orçamento secreto, como se viu. E os requisitórios, agora sem prazo de pagamento — virados num pedaço de papel — poderiam ser negociados, a preço vil, naturalmente. Serão comprados pelos bancos, os receptadores habituais, para revender próximo ao preço de face para as empresas pagarem seus impostos. Prevaleceu, assim, um verdadeiro sistema de botim, que revela os receptadores e agrava o dolo dos agentes políticos.


Recomendei então que tratassem de formar uma frente com os quilombolas e os índios e procurassem a ministra Simone Tebet, constitucionalista e professora, defensora sincera das mulheres e dos grupos oprimidos — doutora e bela —, pois ela é quem encaminha o orçamento. Podem dizer-lhe que ela pode se negar a aplicar as emendas criminosas, porquanto repetidamente declaradas inconstitucionais pelo STF, ao serem editadas para diferir o pagamento de precatórios já atrasados por estados e municípios.

Devem ponderar, também, que não foi um calote da União, mas uma apropriação indébita — crime muito mais grave — porque são valores já pertencentes aos credores, retidos arbitrariamente por quem tem o monopólio da força e acesso à manipulação do direito. E por fim lhe entreguem este parecer [2].


Ficou revigorada a lei de talião com o fracasso da Justiça, mas tem que ver que o malfeitor agora é o Estado que tem o monopólio da força. E as maiorias que controlam os poderes constituídos tem a ideologia do Estado absoluto, que assaltava discricionariamente qualquer grupo social, a qualquer tempo, no território do reino, sem explicação a ninguém.


Naturalmente, esta crônica não é uma denúncia formal dos agentes políticos responsáveis, nem uma representação, porque eles agem ao abrigo de imunidade parlamentar. É apenas uma comunicação na esfera pública da escancarada materialidade do delito de apropriação indébita, com dolo agravado porque seus autores usaram o sistema de botim de forma escancarada.


A lei de talião se transformou mais tarde no Código de Hamurabi, primeiro código escrito de leis da história e vigorou na Mesopotâmia, entre 1792 e 1750 a.C. Os códigos escritos hoje nas emendas criminosas certamente não reconheceriam o cerne da ideia do “olho por olho, dente por dente”, porque o embuste consiste em roubar dos pobres para fazer crer que estão destinando o dinheiro justamente para eles.


[1] SANTANA, Edvaldo. E se os quilombolas atacassem o Planalto? O Globo. Opinião, 12 jan. 2023. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/01/e-se-os-quilombolas-atacassem-o-planalto.ghtml>.

[2] COELHO, Rogério V. A conspirata dos poderes constituídos que atenta contra a constituição e a dignidade da justiça e expropria valores de centenas de milhares de cidadãos pobres. Artigo disponível em: <https://www.direitosfundamentais.adv.br/artigos-e-noticias/> e <https://www.conjur.com.br/2023-fev-01/rogerio-viola-coelho-inconstitucionalidade-pecs-113-11421>.

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